Mestrado inovador de ensino recíproco articulando saber/fazer indígena e conhecimento acadêmico
Mônica Nogueira (celeida@unb.br) e Othon H. Leonardos (othonleonardos@gmail.com) 14/02/2013 - 16:35
Universidade de Brasília, Centro de Desenvolvimento Sustentável CDS |
O Curso de mestrado profissional em desenvolvimento sustentável junto a povos e terras indígenas oferecido pela Universidade de Brasília no biênio 2011-2012. O curso tem proporcionado a formação profissional para indígenas e não-indígenas no cuidar ambiental e na sustentabilidade cultural de sociedades indígenas, na perspectiva do desenvolvimento de uma sociedade pluricultural, conforme os preceitos constitucionais no Brasil de pluralidade cultural, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e autonomia indígena na gestão de seus territórios. A seleção da primeira turma do mestrado foi a mais concorrida da Universidade de Brasília, com 157 candidaturas de indígenas e não-indígenas para 26 vagas - sendo metade delas destinadas a estudantes indígenas. Para proceder com a seleção foram compostas duas bancas examinadoras, uma destinada à seleção dos candidatos indígenas e outra a dos não-indígenas. Ambas as bancas contaram também com a participação de examinadores indígenas. A primeira turma, afinal, foi composta por 14 estudantes indígenas de 13 diferentes etnias, a saber: Apurinã, Bakairi, Baniwa, Baré, Guarani, Kaingang, Kinikinau, Makuxi, Pantamona, Suruí, Umutina, Xavante e Wapixana.
Além dos estudantes indígenas, a primeira turma é composta também por estudantes não-indígenas que atuam em órgãos diversos de governo, nas esferas estaduais e federais, - Ministério da Saúde, Ministério da Cultura, Ministério do Meio Ambiente, Fundação Nacional do Índio (FUNAI), secretarias estaduais de educação - e organizações não-governamentais indigenistas – portanto, com grande potencial de incidirem sobre a formulação, execução, monitoramento e/ou avaliação de políticas indigenistas e correlatas.
A premissa básica do curso é a formação de profissionais de várias etnias indígenas, além de não-indígena atuantes em organizações da sociedade civil e do Estado brasileiro, de modo a garantir a sobrevivência dos povos indígenas, a integridade de seus territórios – patrimônio inalienável da União – e culturas. Dito de outro modo, a Alma Brasileira precisa ser expandida e não eliminada. Além dos direitos humanos fundamentais, entre os princípios norteadores do curso estão: promoção da autoria e do protagonismo indígena na construção do desenvolvimento sustentável, participação paritária de indígenas e não-indígenas; diálogo simétrico entre fazer/saber tradicional e o conhecimento acadêmico, abordagem histórico-espacial interdisciplinar e/ou transdisciplinar, aprofundando do conhecimento para além das racionalidades epistemológicas disciplinares de cada saber especializado, análise crítica das metodologias percebidas como colonizadoras e a construção de novas políticas públicas para fortalecer a sustentabilidade indígena. Buscou ainda integrar, harmonizar, aprofundar e, sobretudo, articular com professores e estudantes, informação, conhecimento e saberes diversos relativos à sustentabilidade da cultura e do território indígena. Dentre os conceitos que se procurou articular com os saberes indígenas destacaram-se os conceitos de sustentabilidade, alteridade, justiça, identidade, pertencimento, complexidade, territorialidade, memória, oralidade, ecossistema, resiliência e equilíbrio ecológico e, em especial, o conceito de responsabilidade aplicada ao comportamento do indigenista face aos grandes conflitos e crises da atualidade que ameaçam a sustentabilidade da relação cultura/natureza característica aos povos indígenas no Brasil.
Com duração de 22 meses e carga horária de 420 horas, as disciplinas do curso foram distribuídas em três módulos presenciais, com sessões concentradas em uma semana a cada mês. Todos os módulos contaram com a participação de professores indígenas e não-indígenas, de modo a realizar os princípios da educação intercultural e do diálogo de saberes. A grade curricular também integrou uma Atividade de Estágio em campo, abrangendo visitas nas Terras Indígenas Yanomami e Tukano, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas. O seminário de encerramento das sessões letivas, intitulado Seminário Integrador 4 - Questões Indigenistas Contemporâneas, realizado em abril de 2012, foi dedicado à análise da situação dos Povos e Terras Indígenas no Brasil, com ênfase sobre casos recentes e emblemáticos de desrespeito a seus direitos fundamentais.
Como resultado deste trabalho, em maio de 2012, foi realizada Audiência Pública numa ação conjunta das referidas frentes parlamentares, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara e o Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Indígenas para continuidade do debate sobre os casos Guarani-Kaiowá e Marãiwatséde (Xavante). A Audiência Pública gerou repercussões bastante positivas, com encaminhamentos práticos sobretudo no caso de Marãiwatséde, em que se deu a retomada do processo de desintrusão de fazendeiros e posseiros instalados há 40 anos nessa terra indígena. Projetos de extensão universitária também foram associados ao curso, incluindo uma exposição sobre a história e as culturas indígenas (Séculos Indígenas) durante a Rio+20, em junho de 2012, no Rio de Janeiro, a produção de material didático e a formação de professores da rede de ensino público para uma abordagem interdisciplinar e intercultural sobre o tema, em cumprimento à Lei 11.645/08, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Indígenas em todas as escolas brasileiras.
Ao final do curso, os trabalhos de conclusão dos estudantes recobrem um amplo espectro de temas e abordagens em desenvolvimento sustentável e conservação da biodiversidade, abordados em diferentes projetos.
Parte desses projetos começam a ser articulados em um Grupo de Pesquisa, cadastrado junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) intitulado “Epistemologias Indígenas Contemporâneas”.
De forma preliminar, destacam-se algumas lições aprendidas da experiência do Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Indígenas. A resposta apresentada ao edital de seleção (157 candidatos para 26 vagas) revela haver uma demanda reprimida por formação acadêmico/profissional na área do indigenismo no Brasil, com ênfase sobre os desafios da sustentabilidade - demanda que se apresenta igualmente para o segmento indígena e não-indígena. Ao longo do curso, também se constatou que a noção de sustentabilidade, no contexto de Povos e Terras Indígenas, deve não só abranger a dimensão cultural, mas tê-la em posição central, ao lado da dimensão ambiental. Há especificidades na produção textual dos estudantes indígenas que merecem ser estudadas, visto que refletem aspectos importantes do diálogo intercultural e anunciam possibilidades de inovação. Por fim, os projetos de extensão, a Audiência Pública realizada por demanda do corpo docente e discente do curso, bem como as propostas dos trabalhos de conclusão de curso de grande parte dos estudantes dão demonstrações claras de que é possível e desejável a articulação entre o debate acadêmico e a intervenção social, sem perda de criticidade e em benefício da responsabilidade social da universidade.